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sábado, 6 de dezembro de 2008
A DANÇA DA MORTE // FERNANDA TORRES
A dança da morte
Fernanda Torres
A peça Seria Cômico Se Não Fosse Sério, de Friedrich Dürrenmatt, foi o melhor espetáculo teatral que meus pais produziram em anos e anos de parceria. Baseada na Dança da Morte, do dramaturgo sueco August Strindberg, ela se passa no início do século passado e conta a história de um general aposentado, Edgar, e sua esposa, Alice, que vivem às turras, isolados em um farol. Um dia, o casal recebe a visita de um primo mafioso, que se esconde com eles no alto da torre. Depois de desassossegar a vida dos dois por doze vertiginosos rounds, o primo cafajeste se manda, devolvendo o par à sua mais derradeira solidão.
Jamais vou esquecer meu pai com barbas de Matusalém, vestido de general da I Guerra, dançando furiosamente a Dança dos Boiardos. Era sensacional. Lá pelo fim do espetáculo, Edgar se levantava louco, altivo, e dizia:
– Agora vou dançar a Dança dos Boiardos!
E começava uma coreografia ensandecida, meio russa, meio gaúcha, pulando em torno de uma espada no chão. Querendo exibir vigor ao primo escroque da esposa, Edgar dança até o limite de suas forças e acaba sofrendo um AVC. A peça termina com Edgar numa cadeira, seqüelado pelo derrame, e Alice arrumando a desordem da casa por causa da passagem do primo.
Era de uma beleza terrível, cortante, teatro com T maiúsculo. Quem viu sabe. Como com teatro não se brinca, havia ali o prenúncio de algo que viria a acontecer com meus pais anos depois, só que de maneira muito mais doce, amorosa e redentora. Minha mãe cuidaria dele, e ele dela; mais ela dele, por problemas de saúde, no terço final de seus 57 anos de casados. Uma amiga gostava de dizer que meu pai ainda estava vivo porque minha mãe e ele queriam assim.
Em 1986 meu pai sofreu um primeiro derrame, não detectado, durante a representação da tragédia grega Fedra. Ele esqueceu o texto em cena e, como a neurologia ainda engatinhava, levamos anos para entender que não era um problema psíquico, mas físico, o início de sua dança da morte, que levou vinte anos para acontecer.
Meu pai é um mistério tão grande para mim que fica difícil falar dele numa crônica. Mas, como estou chegando à conclusão de que todo pai é um mistério para os filhos, ao contrário das mães, que são desabridas, arrisco aqui um modesto perfil.
Dono de um humor cortante, que seria cômico se não fosse sério, doce e sádico, careta e maluco, velho e criança, meu pai foi produtor, diretor e ator, um homem dedicado a todas as facetas do teatro. Teve coragem de largar a medicina, enfrentando o pai médico e político dos tempos da política do café-com-leite, para fazer parte dessa profissão etérea. Dizem que o estalo se deu no trote da faculdade, quando em plena Cinelândia ele gritou: "Fiat Lux!". E as luzes da praça se acenderam numa sincronicidade cósmica. Foi ali, logo de cara, que perdemos um médico e ganhamos um diretor. Devo a ele toda a minha curiosidade científica, devo a ele dizer o que penso, devo a ele o cinema, a infância, Veneza, Machu Picchu, Buenos Aires e as montanhas russas. Devo ao meu pai tudo o que sou que não é ser atriz, e certamente devo ao meu pai a promessa de alguma serenidade diante da velhice e da morte.
Como ele adoeceu há muito tempo, as lembranças do homem de teatro, do pai jovem e doidão, do barbudo enraivecido pela censura de Calabar se misturam fortemente com as do Fernando de saúde frágil com quem convivi nos últimos tempos. É muito difícil para um filho lidar com a doença de seu pai. Por isso, gostaria de agradecer às muitas pessoas que nos ajudaram nesse período, em especial à Roberta, sua fisioterapeuta, aos enfermeiros Jorge e Cristiano e, acima de todos, à doutora Lúcia Braga, do Hospital Sarah Kubitscheck, que deu ao meu pai cinco, seis, dez anos a mais de vida, libertando-o dos especialistas em doenças, cortando catorze medicamentos e colocando no lugar o teatro, os barcos, o pingue-pongue e a vida; e à doutora Claudia Burlá, geriatra, especialização cuja profundidade só fui entender na noite em que meu pai morreu, em casa, conosco em torno dele, e com ela. Sem tubos, sem CTIs, sem prolongadores artificiais de respiração ou batimentos cardíacos. Foi ela que mandou chamar a mim e ao meu irmão, foi ela quem nos ajudou. A morte do meu pai foi uma experiência tão caseira, humana, pacífica e acolhedora, apesar do sofrimento e da dor, que me fez por alguns segundos achar que esse absurdo que é a morte, afinal de contas, pode fazer parte da vida.
Um salva de palmas para ele. Foi um guerreiro discreto, forte e corajoso. Espero conseguir ser assim quando chegar a hora de eu dançar a minha Dança dos Boiardos.
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