Alexei Bueno
O mar único de Sophia, visual e musical
Poemas escolhidos, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Seleção de Vilma Arêas. Editora Companhia das Letras, 288 páginas. R$ 39
Sophia de Mello Breyner Andresen, ou simplesmente Sophia, como era universalmente referida em Portugal, fazia parte, quando de seu muito recente falecimento, de uma espécie de grupo canônico, indiscutido, clássico, dos grandes poetas portugueses vivos, em companhia de Herberto Helder, de Eugénio de Andrade, de António Ramos Rosa, de Mário Cesariny, talvez de muitos poucos outros. Mais velha deles todos, era ainda o grande nome feminino da poesia portuguesa contemporânea. Sua obra, relativamente curta, distingue-se fortemente da de todos os poetas citados, com a exceção talvez da de Eugénio de Andrade, com quem mantinha similitudes. De fato, sua poesia, essencialmente dominada pelo poema curto, em nada se aproxima dos grandes ciclos poemáticos de seu amigo Herberto Helder, nem da pletora quase grafômana de António Ramos Rosa, nem do apelo ao inconsciente de Mário Cesariny. Essencial, clara, cristalina, tudo o que escreveu confirma uma mundivisão ao mesmo tempo uma estética e uma ética, um desejo quase romântico de fusão de vida e obra, que exemplarmente cumpriu.
Urbana ou natural, lusitana ou helênica
Salta aos olhos na poesia de Sophia a sua inalterável unidade dentro do múltiplo. É sempre uma voz — implacavelmente única e muito nossa conhecida — que fala em seus poemas, invariavelmente surgidos, apesar disso, à distância de toda e qualquer constrição temática. Sua poesia é atemporal ou histórica, atlântica ou mediterrânea, urbana ou natural, lusitana ou helênica, política ou subjetiva, mas sempre se manifesta por tal voz única, que nunca se repete. Subjacente a tudo isso, através de tudo o que escreveu, essa consciência trágica da desaparição, do exílio da beleza do mundo a que estamos condenados, muito dolorida por muito sóbria, que talvez seja um dos fundamentos dessa mesma unidade.
O mar é o grande cerne de sua obra, o do Algarve ou o da Grécia, outra grande obsessão sua. Mais visual que musical — embora alcançasse seus maiores momentos quando unia essas duas postulações num todo irretocável — poderia situar-se geneticamente mais para a linha de Cesário Verde do que para a de Camilo Pessanha, não fosse tudo isso falsificações práticas que tentam escamotear a grande musicalidade de Cesário e a espantosa visualidade de Pessanha. Os poemas menos conseguidos de Sophia são, no entanto, aqueles, geralmente mínimos, em que o elemento sonoro parece renunciar a acompanhar o outro, e o complexo milagre do poema curto — que geralmente se resolve numa iluminação ou redunda em fracasso — não se cumpre totalmente, tangenciando às vezes o prosaico, coisa que aconteceu em um ou outro de seus poemas militantes, logo após o 25 de Abril, que lhe deram grande notoriedade em Portugal, mesmo se não fossem dos maiores momentos de sua obra.
A seleção da antologia, escolhida e prefaciada por Vilma Arêas, parece-nos a melhor possível, registrando todos as facetas de Sophia de Mello Breyner, e, o que é o mais importante, não omitindo os seus grandes poemas. Para o leitor brasileiro, além da fruição óbvia de tantos momentos de alto lirismo, será uma curiosidade a leitura dos poemas dedicados aos poetas brasileiros seus amigos ou de sua admiração, como “Manuel Bandeira”, das mais precisas homenagens a ele feitas, com o acréscimo de ser por uma estrangeira, ou os poemas para Murilo Mendes e João Cabral, seus amigos, da maior qualidade. Importantes também são os não poucos poemas referentes a Pessoa, dos melhores que encararam a sua presença gigantesca, hoje sentida até como incômoda em Portugal por certos poetas de fraca categoria.
O prefácio situa bastante bem a posição de Sophia, inclusive em relação ao Brasil, embora não compreendamos a classificação de Rilke como “romântico alemão”. O maior, talvez único, defeito do livro, encontra-se numa questão banal de semiótica gráfica. Muitos dos poemas não levam títulos. Consideramos um equívoco não marcar de nenhuma forma o início de cada um, seja por capitular, primeira palavra em negrito, ou mesmo, em último caso, pelo uso do primeiro verso como título. O que é imperdoável é marcar o início dos poemas não titulados apenas pela altura da página. Não haverá leitor na face da terra que, ao ler a “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal”, seguramente um dos mais belos poemas da autora, na página 108, não o emende com o primeiro verso do poema sem título da página 109, exceto o conhecedor da sua obra. E tal possibilidade se repete algumas vezes. São desleixos de composição que se tornam comuns, como o inacreditável processo de margear poemas pela direita, como se lêssemos em árabe. Excetuando esse senão, o lançamento dessa primeira e vasta antologia de Sophia é uma festa para o leitor de poesia.
ALEXEI BUENO é poeta
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